2 de fev. de 2013
Impressionante o fascínio que as pessoas tem pela morte. Todo o mistério que ela traz, e também a bizarra atitude humana de querer sempre vasculhar, observar, se acotovelar para chegar perto daquele acidente, da porta da boate, da praça do edifício em chamas.
Mas pouco de defende sobre o direito de morrer. Afinal, temos direito a decidirmos o nosso próprio destino, inclusive quando queremos que este destino seja a morte?
Lendo a PIAUÍ, uma revista que adoro pela naturalidade com que expõe a realidade, um artigo me chamou a atenção. UMA VIDA QUE MERECE SE ENCERRAR, de MICHAEL WOLFF mostra a história de sua mãe, mulher articulada, inteligente, independente. Mas de repente, do riso fez-se o pranto e ela cai na demência. O que ela vive é uma consequência rasgante da longevidade. Gastam-se fortunas nas pesquisas para que as pessoas vivam mais e mais. Mas nunca perguntaram a elas: VOCÊS QUEREM?
Michael escreve: "Quando trocam a fralda de minha mãe, ela faz ruídos de um desespero
rascante. Durante um tempo, antes que perdesse toda a linguagem, era
possível, com um esforço de concentração, decifrar o que ela estava
dizendo, o que repetia sem parar: “Isso é uma violação. É uma violação.
É uma violação.” A coisa estarrecedora é que você vê tudo isso chegar – você está vendo, mas teima deliberadamente em não ver."
É aí que perde-se, além da liberdade, a dignidade. E o que resta? A dependência dos familiares daquele sentimento de posse. A pessoa não pode ir. Ela tem que ficar. Mesmo que com aparelhos, dores, fraldas... Mas não perguntam à pessoa: é isso?
Claro, nos adaptamos à realidade. A casa não tem mais música alta, as visitam entram e saem o tempo todo.
Este foi um dos poucos artigos que li sobre o tema de forma competente e sem levantar a bandeira da jovialidade e das casas de repouso. Ontem, consegui chegar ao sufocamento no cinema ao assistir o filme AMOR.
Com um realismo cortante, ele nos leva no fundo do fundo da dor da existência.
Tem uma medida certa para tudo. E não te o drama envolvente da música de fundo, das cores bonitas. Não. É cru na essência.
Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle
Riva), dois reformados professores de música, acabam de regressar de um
concerto de um antigo protegido. Octogenários, Georges e Anne permanecem um
casal feliz e apaixonado. Na manhã seguinte, Anne sofre uma trombose e fica com
o lado direito do corpo paralisado. O amor do casal é colocado à prova,
conforme o estado de saúde de Anne se deteriora e Georges se sente mais isolado
e agoniado.
Gosto da sinceridade da arte. É a sinceridade que nos tira da zona de conforto. Assim como Riobaldo alivia-se pela sua não homossexualidade, mas se arrebenta por dentro ao descobrir que "Ela era. Tal que desencantava num encanto tão terrível"... Ou Gregor, a barata, com sua morte melancólica, sozinha e fria, onde somente uma maçã cravada em sua pele fora sua única testemunha... Ou Macbeth que conseguiu ser morto por circunstâncias jamais sonhadas... Mas poucas as obras tratam do mais novo fenômeno humano: a velhice prolongada. Que me lembre, Memórias de Minhas Putas Tristes, que narra os momentos finais da vida de forma dolorida e sem cor.
Pois bem... Os personagens do filme são dois senhores aposentados que tem uma vida parisiense normal: vão a concertos, pegam ônibus, metrô, fazem suas refeições, dormem nas horas certas... Mas o final da vida chega num piscar, ou melhor, num olhar perdido. E aí, é hora de se preparar para o fim de forma triste: através do sofrimento de ambos.
Quando perde-se a dignidade, é hora de ouvir a voz interna do outro.
Georges faz isso. Vê a dor de sua esposa ao ser lavada por uma enfermeira. Ao precisar de ajuda ao comer, ao levantar, e depois, quando perde o controle do próprio xixi.
E como escapar? Ela deixa de comer, e vai deixando, aos poucos, de existir. E Georges também vai se deteroranto...
A filha do casal visita os pais de tempos em tempos. E também não sabe o que fazer. E distante como mostra, não tem, realmente, o que fazer. E o sarcasmo lúcido de Georges é um ponto fantástico, onde, questionado por que não atende aos telefonemas da filha, responde: "Não vou perder meu tempo com suas preocupações. Tenho que cuidar da sua mãe."
Georges passa por cima do emocional para adquirir uma personalidade racional e instintitva. Genial!
O filme nos habita por inteiro com sua sinceridade.
Georges soube parar. Soube se retirar com classe a existência que teima em continuar nada sublime.
E poucas são as pessoas que entendem isso. Minha avó, uma linda senhora que estudou somente até a 4ª série (e como ouvinte), articuladíssima e inteligente, é sábia em suas frases. Ela disse: "Saber se retirar da vida é um ato de coragem, não de covardia".
E Heloísa, uma de minhas melhores amigas, com seus 67 anos muito bem vividos entre letras, filmes e teatro, conta a história do seu pai, que viveu 99 anos e 6 meses, e, em seu leito de morte, poucos minutos antes de partir, escreveu: "O corpo é o abrigo do tempo. O meu tempo já acabou".
É preciso sabedoria para saber que precisa ir. Que vamos perder pessoas queridas. Que a vida é crua como tem que ser. Ponto.
Assista o trailler do filme
AQUI