Aquele homem com nome de origem
grega era um bon vivant. Mas era daqueles
apreciadores da vida que andam por cima. Levava uma alegria enorme e, como caixeiro
viajante, rodou o Brasil. Sabia das mais variadas receitas caseiras, em
especial do óleo de copaíba.
Conheci aquele homem num
congresso organizado pela minha turma de pós-graduação. Ele era pai de uma
amiga. Nossa afinidade simplesmente bateu. Coisa de pele. Em
segundos, eu me transformei na amiga de anos. E assim começou uma relação de
amizade e afeto que durou exatamente um ano.
Minha amiga foi sempre cercada de
boas energias. E seu pai não era diferente. Juntos, eles tinham uma sintonia
invejável. Um amparava o outro. Era bonito de se ver. E eu entrei na vida dos
dois um tanto por acaso. E ali permaneci. Fui bem vinda.
E compartilhamos momentos e
palavras. Uma vez eu estava no hospital na madrugada para tratar meu duodeno, e
aquele homem ficou preocupado. Ele estava em São Paulo, mas queria me ajudar de
todas as maneiras. E aquelas palavras acalentaram a noite fria e dolorida.
A minha amiga sempre me avisava
quando o pai estava na cidade. Ele não parava quieto. Rodava o mundo com toda
sua emoção. Para ele não tinha tempo ruim. Os momentos sabiam ser apreciados. Todas
as vezes que o encontrei, ele elogiava as filhas, as ex-mulheres, os amigos.
Ele tinha a sorte de ter pessoas fantásticas ao seu lado. Era completo. Falava
de sua sobrinha lúpica com orgulho de pai. De certa forma, eu também o “adotei”
como um pai postiço. Ele cobria as minhas carências com seu acalento.
Resolvi mostrar aos dois a minha
pizza sem glúten. Brindei a ele. Disse que aquela era a primeira vez que iria à
minha casa, mas não seria a última. Sua presença era importante, e eu o queria
mais vezes. Minha amiga já é de casa. Nunca vou esquecer aquele brinde com um
vinho gelado malbec. Ele ainda abriu todos os pistaches pra mim, dizendo que
aquela era a sua função masculina.
Outra noite fui tomar um café com
os dois. Nos fartamos com conversas e comidas. Ele era espirituoso, disse naquele
encontro que tinha que se ajoelhar no milho para agradecer pela vida que tinha,
pelas pessoas que o cercavam e pelas filhas maravilhosas. “Mas tem que ser
milho em lata”, ele disse, “tem que ser do meu jeito”!
Na páscoa trocamos mensagens.
Queria lhe mandar chocolates, mas ele não gostava. Então, marcaríamos outro
jantar para ele experimentar meu estrogonofe de berinjela. Mas aquele jantar
não aconteceu.
Num sábado abafado eu acordei com
uma tristeza sem fim. Fui para um atacadista fazer compras e acabei desmaiando
em cima do presunto, quase uma ironia. Foi um desmaio rápido, mas demorei a
ficar livre dos transeuntes, que queriam me levar para o hospital. Eu estava
numa atmosfera ruim, não queria aquilo. Dei meu jeito e fui embora. Sabia que poderia ter outros desmaios. Então, peguei vários filmes e resolvi passar um
fim de semana sabático regado a terror. Eu gosto de terror quando fico
triste.
A angústia foi passando e resolvi
assar uma fornada de pão de queijo. Pensei na minha amiga. Ela poderia provar
aquele quitute feito pela minha mãe, com aquele saborzinho de Minas
Gerais. Somos fanáticas por queijos.
Mas os pães de queijo ficaram
congelados dentro do forno desligado. Naquele momento, recebi uma ligação.
Aquele homem que tinha nome de origem grega estava morto. Entrei em parafuso.
Pensei no brinde. Pensei no café. Pensei na minha amiga. Onde ela estava? Ela
precisava de mim. Liguei e só perguntei onde estava. Peguei um táxi e fui
correndo. Esqueci-me dos filmes. Esqueci a tristeza e os desmaios. Eu tinha que
ser forte. Minha amiga precisava de mim.
No taxi eu fiquei pensando no que
tinha acontecido. Ele era novo, tinha uma vontade enorme de viver. Por que? Por
que? Minha amiga precisava de mim. Entrei no apartamento e subi o elevador com
um aperto no peito. Saí do elevador e vi minha amiga parada na porta do apartamento. Dei-lhe um
abraço longo e apertado. Lembrei-me de Aristóteles com sua frase “a amizade é
uma alma com dois corpos”. Queria passar
uma energia boa, mas percebi que eu também estava aos prantos. Tudo se
passou naquele abraço. A nossa troca de afeto. A nossa falta de chão.
Eu também tinha perdido alguém.
Um companheiro de palavras. Eu o admirava. Minha amiga precisava de mim. Fiquei
o tempo que pude. Não queria que aquele momento fosse amargo. Minha amiga
precisava de mim.
O velório foi cercado por uma
mistura de sentimentos. Sentimentos errantes, por vezes vazios, sentimentos
nobres, mas muito fortes. Não, aquele homem que estava deitado coberto de
flores não era ele. Aquele que jazia era pálido, magro. Vi uma carcaça.
O homem já não habitava aquele corpo. Ele se encontrava na eternidade. A
sensação era de paz e leveza. Ele estava bem. Mas nós estávamos tristes. Era uma
incompletude. Eu o queria de volta. Eu queria que aquele momento não existisse.
Minha amiga precisava de mim.
Eu via minha amiga chorando e
chorava junto. Não cheguei perto do homem. Aquele não era ele. Ele não tinha o
semblante triste.Aliás, ele nunca era triste.
Quando o caixão se fechou, todos
que ali estavam ficaram aos prantos. Minha amiga não precisava de mim. Aquele
momento era dela. Naquele momento cheio de dor não cabiam amigos. Aquela
atmosfera pesada tinha que ser digerida. Minha amiga estava trocando de pele. E
quando isso acontece, o organismo precisa dormir. Precisa respeitar o sono qe vem com a fraqueza física. Respeitei o momento dela.
Fui para casa. Eu também precisava dormir.
Não sei como foi o final do dia
para minha amiga. Mandei boas energias, mas fiquei distante. Respeitei a sua
solidão.
Aquele home cujo nome significa “cheio de amor” não era um personagem de
tragédia grega, mas sim um amante da vida e das pessoas. Seu corpo foi cremado.
Sua alma caminha alegre em nossa vida, nos iluminando.
Minha amiga não está só. Eu não
estou só. Precisamos nos conformar com a falta da carcaça corporal. Porque ele
estará sempre aqui, ali, em toda parte. Nunca errante. Nunca triste. Sempre “cheio de amor”.
1 comentários:
Obrigada Flavitcha.
Tenho certeza que de onde meu pai está leu e gostou do que viu e do seu carinho com ele e comigo.
um beijo grande.
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